sábado, dezembro 12, 2015

A excelente entrevista que o jornalista Jamil Chade, correspondente do jornal o Estado de São Paulo concedeu ao jornal espanhol, El País... Vale ler.

“A CBF enriquece muita gente com a indústria de amistosos do Brasil”

Autor do livro “Política, Propina e Futebol”, Jamil Chade fala sobre os bastidores do futebol

El País

O ano de 2015 foi de mudanças no esporte.

As prisões de 30 altos dirigentes do futebol mundial, entre eles o presidente da CBF, José Maria Marin, no exercício do cargo, e a suspensão até do presidente da FIFA iniciou um movimento de renovação no cenário mundial.

Correspondente do jornal O Estado de S. Paulo na Europa desde 2000, Jamil Chade presenciou a ascensão do império da FIFA e a queda de cartolas que passaram anos enriquecendo às custas da paixão dos torcedores pelo futebol.

No recém-lançado “Política, Propina e Futebol”, o autor descreve acordos milionários, revela a rota do dinheiro na seleção brasileira e explica como o futebol virou uma máquina de fazer dinheiro para a oligarquia da bola.

Na entrevista abaixo, Jamil fala sobre os bastidores da cobertura do futebol mundial e conta por que a seleção brasileira, hoje, "é uma grande mentira".

Pergunta. O jornalista que investiga e dá notícias que os cartolas e dirigentes não querem ouvir muitas vezes é colocado como um traidor da seleção brasileira, contrário ao país. Você passou por isso?

Resposta. Muito. Na verdade, na cobertura diária da seleção brasileira há um sistema de chantagem. Falo isso tranquilamente. É uma chantagem das mais diretas. Quanto mais você mergulha no que de fato acontece, menos acesso você tem ao futebol. A retaliação primeira que a CBF fazia era a de fechar as portas para a cobertura adequada de uma partida de futebol, inclusive com entrevistas com jogadores. A punição inicial era: “Lembra aquela entrevista que você disse que queria com o Neymar, que você estava esperando há dois anos? Então, eu vou dar para o concorrente”. Literalmente dar para o concorrente sem o concorrente pedir, às vezes. Justamente para te dar uma mensagem: “você vai ter que escolher, ou você cobre a seleção brasileira como um produto, e aí você vai ter acesso, espaço. Se passar dos limites você está literalmente fora do jogo”. Quantas vezes eu ouvi assessor da CBF dizendo: “você acha que eu vou dar entrevista de tal jogador para aquele meio de comunicação depois do que eles disseram? ”. É uma punição justamente porque você está do lado errado do jogo. Essa chantagem sempre foi muito presente e é prejudicial aos meios de comunicação porque o leitor também quer a entrevista com o principal craque da seleção no jornal. Além disso, existe a constante ameaça de processo. Lembro de uma das primeiras matérias que eu fiz, o recado era “se você publicar isso, a gente vai ter que abrir um processo”.

R. Sim, assessoria de gente bastante elevada dentro da CBF. Eu nunca tive nenhum processo da CBF porque eles sempre souberam que eu público a partir de documentos, não de alguém que me disse. Isso limitava bastante a atuação deles. Além dessas chantagens e das ameaças, tem a outra parte que é literalmente tirar todo o seu crédito como jornalista. Te ofendem para ver se você cai no mesmo jogo, porque aí a festa está feita. Eles usam de chantagem, ameaça e jogo sujo. É bastante grande a pressão.

P. Diante disso, quanto realmente chega para o público do que acontece de verdade no futebol brasileiro?

R. Te dou um exemplo. Já perdi a conta da quantidade de amistosos que eu cobri. Quanto mais eu sabia o que de fato acontecia na organização de um amistoso, mais eu me sentia mal comigo mesmo, como jornalista, de estar tratando aquele jogo como um jogo. De passar para o leitor: “olha, o treinador vai fazer esse teste, vai fazer aquilo, o resultado é importante porque prepara a seleção”. Era tudo mentira. Quanto mais eu conhecia a forma com a qual os amistosos eram utilizados, mais eu entendia que a gente não estava sendo honesto com o torcedor. Dou exemplo de dois amistosos que foram totalmente estapafúrdios, que a real cobertura deveria ignorar o jogo e falar só sobre o que aconteceu. O primeiro é Brasil x Japão (em 2012, vitória do Brasil por 4 a 0), ao meio-dia de uma terça-feira, dia normal de trabalho, no interior da Polônia (em Wroclaw). O estádio estava vazio. O jogo era entre duas seleções que não têm nenhuma relação com aquela cidade no interior da Polônia. Aí comecei a investigar. Aquele horário foi escolhido porque é o horário nobre no Japão, muito bem. Então por que o local? O local faz parte de um esquema para alguém ganhar com aquilo. Quem estava organizando o jogo era um sócio de alguns ali dentro da CBF. Ou seja, aquela partida não tinha nada a ver com o futebol. Cinco dias antes, eu estive em outro jogo da seleção. Brasil e Iraque, na Suécia. O Brasil ganhou por 6 a 0, mas aquilo não foi um jogo, foi um esquema. Eu mostro com documentos é que esses jogos servem para enriquecer algumas pessoas. Esse enriquecimento a gente não conhecia. Não de uma forma institucional, com contrato. E pior, com o dinheiro indo para paraísos fiscais, com empresas de fachada e paraísos fiscais. O que existe em torno da seleção brasileira é uma indústria dos amistosos. Mas pelo menos a gente aproveita para preparar a seleção para algum torneio? Não, porque o técnico é obrigado a colocar em campo alguns jogadores. Não tem espaço para preparação. O que é hoje a seleção brasileira? Falo isso com tranquilidade total: é uma grande mentira. Hoje a seleção brasileira é uma grande mentira.

P. Você pode citar algum jogador que só foi convocado para a seleção brasileira para ser vendido?

R. Eu prefiro te dizer um exemplo contrário. Alguns jogadores convocados não eram ainda as grandes estrelas, e por conta disso os patrocinadores reclamaram. Aconteceu em dois jogos, em 2011, um deles era Brasil x Egito e o outro era Brasil x Gabão. David Luiz e Hulk foram convocados e os organizadores chiaram porque eles não eram jogadores do time 'A', não eram estrelas, eram promessas. O David estava no Benfica e o Hulk estava no Porto. As empresas que tinham direito sobre a seleção avisaram a CBF que se aquilo acontecesse de novo, o cachê pago seria cortado em 50%, porque estava no contrato. É uma realidade, existem esses esquemas. Está escrito isso, eu tenho um documento que prova isso. O contrato chega até a falar no nome desses dois jogadores dizendo que aquilo não poderia mais acontecer. O Dunga falou há pouco tempo que a pressão dos empresários por convocação é muito forte. Isso existe. Se voltarmos um pouco no tempo, lembro do (Vanderlei) Luxemburgo na seleção (foi treinador entre 1998 e 2000), que em dois anos convocou 90 jogadores. É de se perguntar: 90 jogadores? Haja teste.

P. O Del Nero foi colocado entre os investigados pelo FBI e pediu licença da CBF. O que significa esse momento para o futebol brasileiro? Ricardo Teixeira e Del Nero podem ir para a cadeia?

R. Não nos Estados Unidos. Duvido que haja uma possibilidade legal de que eles acabem sendo presos lá. O Brasil não extradita, essa é a lei que existe no país. A questão é se eles vão para a prisão no Brasil. E aí existem ainda alguns desafios ainda. Primeiro é de que a corrupção privada não é crime no Brasil. Se eu e você fecharmos um negócio com uma terceira empresa e você ficar com 10%, não é crime no Brasil. Agora, se for usando dinheiro público, aí sim. O desafio no Brasil é sair da esfera privada. É fazer uma ligação disso tudo que aconteceu com a parte pública. Existe a possibilidade de que eles sejam presos? Existe, mas por esse caminho e por dois outros: lavagem de dinheiro e evasão fiscal. Se for depender o processo do FBI nos Estados Unidos, ainda não chegou a hora.

P. O que esperar dessa saída do Del Nero da CBF e dos novos dirigentes que podem assumir o futebol brasileiro?

R. Ainda estamos na fase da transição. O golpe ainda não aconteceu. Não digo golpe de Estado, mas o processo de transição que está acontecendo com duas forças diferentes. A primeira é daqueles que estiveram no poder e ainda estão com muita influência, ainda tentam de alguma forma controlar o que está acontecendo. Podem até deixar o poder, mas sem que isso signifique uma punição muito alta. É o Del Nero, por exemplo, tentando manobrar para escolher seu sucessor que, claro, vai blindar a pessoa que estava ali antes. Isso como fez o Marin com o Ricardo Teixeira e como fez o Del Nero com o Marin. O Del Nero agora prepara uma transição para que ele possa dormir tranquilo. Essa é uma realidade de um contexto que eu acho que está acabando. Porque nós temos jogadores protestando, temos uma desilusão cada vez maior em relação à seleção brasileira, pela primeira vez patrocinadores estão hesitando assinar contratos com a CBF e eu vejo uma conscientização maior do torcedor.

P. O que dá para ver é que as pessoas estão comprando menos a camisa da seleção, no geral.

R. Sim, é verdade, mas isso já é um passo muito bom e muito grande. Isso não é pouco para um país que aprendeu que aquela seleção era praticamente a nossa identidade nacional. Dar um passo assim é um rompimento importante, mas vai precisar de um empurrão a mais para esse lado da reforma vingar sobre o lado do status quo.

P. O que aconteceu na Fifa pode servir de exemplo para o Brasil? A pressão dos patrocinadores foi decisiva para o começo de uma mudança, a queda do Blatter, por exemplo. Tanto é que a FIFA pode fechar 2015 com déficit depois de muito tempo.

R. Sim, isso foi absolutamente fundamental para tudo o que aconteceu. Mas o patrocinador tirar dinheiro envolve o cálculo do torcedor, porque o patrocinador não quer ver o nome dele vinculado a uma entidade que o torcedor/consumidor vê como corrupta. É um triângulo muito real na mente do patrocinador, principalmente. Porque o patrocinador não está ali apenas para apoiar o esporte, ele também precisa vender o produto dele. Se vender o produto começa a ficar complicado porque ele começa a ser visto como cúmplice daquele crime, então ele vai pensar duas vezes. É o torcedor que manda esse recado. A imprensa pode trazer revelações, pode apontar caminhos, mas no final das contas é o torcedor que decide acreditar ou não. Se o patrocinador sentir que o torcedor está se desconectando daquela marca, ele vai repensar. Mas talvez ainda falte um o elemento final para tudo isso que é a Polícia Federal agir no Brasil. Por enquanto eles não podem, porque a corrupção é privada, só podem agir se tivermos lavagem de dinheiro, evasão fiscal. Acho que está muito perto disso. Na verdade, apesar de muita gente ainda falar do 7 a 1 em 2014, o ano decisivo para o futebol brasileiro foi 2015, quando ficou estabelecido que não era apenas um grupo de jornalistas que pega no pé ou traidores da pátria que apontavam aquele esquema como corrupto. Foi o FBI dizendo que o esquema que foi montado no Brasil fraudou o futebol brasileiro. Essa é uma mudança bastante grande. Estamos diante de um momento decisivo, mas ele ainda não acabou.

P. As inúmeras doações que a CBF vem fazendo para políticos há pelo menos 20 anos não podem travar esse processo no Brasil?

R. Podem. Por isso que eu digo que a transição não acabou. A CBF está usando todos os mecanismos que ela detém. Tem o negócio de abrir a gaveta, pegar o canhoto do cheque, ver para quem ele foi dado, qual campanha de deputado, senador foi paga com o dinheiro da CBF e cobrar. Chegou a hora da CBF cobrar. Por isso esse é um momento decisivo. Agora nós vamos saber quem está de qual lado. Ficará muito claro. Eu tenho várias críticas à CPI do futebol, ao processo, aos membros da comissão. Imagine só, o Fernando Collor de Mello faz parte, então não precisa falar muito. O Romário, por exemplo, não ataca o Kléber Leite (ex-presidente do Flamengo) que está no mesmo processo do FBI que aparece o Marco Polo Del Nero. Então fica claro que tem vários problemas graves na comissão, mas a principal função da CPI é ser um espelho do que é hoje o poder no futebol, o poder político desses cartolas. O que vai ser testado na comissão não é se o sigilo bancário do Del Nero vai ser quebrado. É escancarar para o cidadão, para o eleitor, de que lado cada senador está. De alguma forma ela é positiva, ela não chegar aos resultados máximos que todo mundo pode esperara, como a prisão de alguém, por exemplo. Mas ela joga uma luz muito clara em quem é quem e quais são os aliados políticos desse grupo corrupto. No livro eu falo desse aspecto, não adianta ficar falando só dos corruptos do futebol, precisamos falar também dos cúmplices desses corruptos. E eles são senadores, deputados, juízes, televisões, imprensa. Existe gente dentro do governo, fora do governo. Os cúmplices são tão responsáveis pelo fracasso do futebol brasileiro hoje como os próprios corruptos.

P. Depois de tudo o que aconteceu com Ricardo Teixeira, João Havelange, Marin e Del Nero, estamos muito longe de ver um brasileiro chegar ao poder no futebol mundial?

R. Sim, muito longe. Nesse ano, que era decisivo para as reformas para o futebol, o Brasil perdeu espaço. Todo mundo ou estava preso ou simplesmente não queria se envolver por temer ter alguma coisa respingada. O Fernando Sarney, que hoje é vice-presidente da CBF, não quer assumir a presidência porque sabe que se isso acontecer o escrutínio sobre ele será muito maior. Hoje, a influência do Brasil no futebol mundial sofreu uma queda total, não existe uma pessoa que esteja hoje coordenando as reformas na Fifa que atenda aos interesses brasileiros.

P. E tem alguém que poderia fazer bem ao futebol brasileiro nesse momento?

R. Sim, existem pessoas que poderiam, mas o problema é mais grave do que isso. Nos últimos 30 anos foi montada uma estrutura que só chega ao poder ou só faz parte do grupo quem já está dentro de um esquema. As pessoas até são eleitas democraticamente pelas regras, só que as regras foram criadas de um jeito que só um determinado grupo de pessoas pode ser eleito. É dentro da lei, mas não é democrático. O que precisa é que a formação de líderes do futebol brasileiro não vai ser da noite para o dia, porque foi justamente impedido que uma geração nova em termos de pensamento chegue ao poder. Essa geração até existe, mas ela é barrada. Vamos sofrer mais alguns anos com isso. Ainda não está claro que essa nova geração vai conseguir romper com esse esquema montado da oligarquia da bola. Essa oligarquia coloca regras. Se isso não for rompido, temos dois cenários. Um é de total marginalização do futebol brasileiro no mundo e outro é um futebol nacional cada vez mais à mercê do interesse privado. É o pior dos mundos.

R. Sim, mas não só eles como organização. É também uma geração de pessoas que estão tentando pensar uma nova forma para o futebol brasileiro. Vai além do jogador, tem também a parte administrativa das coisas. Eu achei muito legal quando fiz o lançamento do livro em Porto Alegre e o goleiro Dida estava na plateia, ouvindo o que eu estava dizendo. E ele foi goleiro da seleção por 10 anos. Então a gente vê que existe a possibilidade de aqueles que de alguma forma estavam ali dentro queiram saber, agir para mudar alguma coisa. Não tenho uma visão pessimista do futebol, de que é um esporte de alienados, que só é usado para corromper. Não acho isso. Nós não somos alienados, o torcedor não é alienado, mas esse é o momento de reverter a história. Esse jogo é público? Então os principais acionistas são os jogadores e os torcedores. E esses acionistas hoje querem uma voz no futebol. Isso pode mudar muita coisa. Só quero dar mais um exemplo. Chegou a ser proposto em certo momento na Fifa de que presidentes de confederações nacionais fossem eleitos também pelos jogadores da primeira divisão daquele país. Qual foi a entidade regional que bateu o pé e falou “de jeito nenhum”? A Conmebol. Ela rejeitou dar qualquer tipo de poder aos principais atores do futebol, que são os jogadores. E aí a gente vê a distância do que se chama de uma gestão democrática do futebol.

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