Garrincha morreu no dia 20 de
janeiro de 1983...
Lá se vão 33 anos.
No dia 22 de janeiro, Carlos
Drummond de Andrade, que também cronista, além de poeta, o homenageou...
Perfeito como sempre, Drummond
eternizou com palavras o sentimento que o futebol e seus ídolos provocam em
cada um de nós.
Mané e o Sonho
Jornal do Brasil, 22/01/1983
A necessidade brasileira de
esquecer os problemas agudos do país, difíceis de encarar, ou pelo menos de
suavizá-los com uma cota de despreocupação e alegria, fez com que o futebol se
tornasse a felicidade do povo.
Pobres e ricos param de pensar
para se encantar com ele.
E os grandes jogadores
convertem-se numa espécie de irmãos da gente, que detestamos ou amamos na
medida em que nos frustram ou nos proporcionam o prazer de um espetáculo de 90
minutos, prolongado indefinidamente nas conversas e mesmo na solidão da
lembrança.
Mané Garrincha foi um desses
ídolos providenciais com que o acaso veio ao encontro das massas populares e
até dos figurões responsáveis periódicos pela sorte do Brasil, ofertando-lhes o
jogador que contrariava todos os princípios sacramentais do jogo, e que, no
entanto, alcançava os mais deliciosos resultados.
Não seria mesmo uma indicação de
que o país, despreparado para o destino glorioso que ambicionamos, também
conseguiria vencer suas limitações e deficiências e chegar ao ponto de grandeza
que nos daria individualmente o maior orgulho, pela extinção de antigos
complexos nacionais?
Interrogação que certamente não
aflorava ao nível da consciência, mas que podia muito bem instalar-se no
subterrâneo do espírito de cada patrício inquieto e insatisfeito consigo mesmo,
e mais ainda com o geral da vida.
Garrincha, em sua
irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos a chave de um
segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava, inocente que era da
origem do poder mágico de seus músculos e pés.
Divertido, espontâneo,
inconsequente, com uma inocência que não excluía espertezas instintivas de
Macunaíma — nenhum modelo seria mais adequado do que esse, para seduzir um povo
que, olhando em redor, não encontrava os sérios heróis, os santos miraculosos
de que necessita no dia-a-dia.
A identificação da sociedade com
ele fazia-se naturalmente.
Garrincha não pedia nada a seus
admiradores; não lhes exigia sacrifícios ou esforços mentais para admirá-lo e
segui-lo, pois de resto não queria que ninguém o seguisse.
Carregava nas costas um peso
alegre, dispensando-nos de fazer o mesmo.
Sua ambição ou projeto de vida
(se é que, em matéria de Garrincha, se pode falar em projeto) consistia no papo
de botequim, nos prazeres da cama, de que resultasse o prazer de novos filhos,
no descompromisso, afinal, com os valores burgueses da vida.
Não sou dos que acusam dirigentes
do esporte, clubes, autoridades civis e torcedores em geral, de ingratidão para
com Garrincha.
Na própria essência do futebol
profissional se instalam a ingratidão e a injustiça.
O jogador só vale enquanto joga,
e se jogar o fino.
Não lhe perdoam a hora sem
inspiração, a traiçoeira indecisão de um segundo, a influência de problemas
pessoais sobre o comportamento na partida.
É pago para deslumbrar a
arquibancada e a cadeira importante, para nos desanuviar a alma, para nos
consolar dos nossos malogros, para encobrir as amarguras da Nação.
Ele julga que entrou em campo a
fim de defender o seu sustento, mas seu negócio principal será defender milhões
de angustiados presentes e ausentes contra seus fantasmas particulares ou
coletivos.
Garrincha foi um entre muitos
desses infelizes, dos quais só se salva um ou outro predestinado, de estrela na
testa, como Pelé.
A simpatia nacional envolveu Mané
em todos os lances de sua vida, por mais desajustada que fosse, e isso já é
alguma coisa que nos livra de ter remorso pelo seu final triste.
A criança grande que ele não
deixou de ser foi vitimada pelo germe de autodestruição que trazia consigo: faltavam-lhe
defesas psicológicas que acudissem ao apelo de amigos e fãs.
Garrincha, o encantador, era
folha ao vento. Resta a maravilhosa lembrança de suas incríveis habilidades,
que farão sempre sorrir a quem as recordar.
Basta ver um filme dos jogos que
ele disputou: sente-se logo como o corpo humano pode ser instrumento das mais
graciosas criações no espaço, rápidas como o relâmpago e duradouras na memória.
Quem viu Garrincha atuar não pode
levar a sério teorias científicas que preveem a parábola inevitável de uma bola
e asseguram a vitória — que não acontece.
Se há um deus que regula o
futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus
delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios.
Mas como é também um deus cruel,
tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente
divino.
Foi um pobre e pequeno mortal que
ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas.
O pior é que as tristezas voltam,
e não há outro Garrincha disponível.
Precisa-se de um novo, que nos
alimente o sonho.
Carlos Drummond de Andrade
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