Imagem: Central Press/Getty Images
1947: o ano
que (quase) congelou o futebol inglês
O inverno
europeu mais rigoroso em 40 anos, levou o Reino Unido a pensar em parar o
futebol, porém, o frio não apenas não paralisou a disputa, como aquele
campeonato terminou de forma quente e com a quebra do jejum de 24 anos sem
títulos do Liverpool
Por Pedro
Henrique Brandão Lopes/Universidade do Esporte
O futebol
inglês ficou paralisado durante a Segunda Guerra Mundial.
Desde o
campeonato de 1940, que foi interrompido na terceira rodada em razão da eclosão
do conflito, até a decisão de retomar a disputa no verão de 1946, os ingleses
ficaram longos seis anos sem sua grande criação e paixão esportiva.
Após a
guerra, além de destruída em infraestrutura, a Inglaterra também estava
arrasada animicamente, mesmo saindo como uma das vencedoras, a miséria havia
tomado conta de grande parte da população.
A história
mostra que ninguém sai de uma guerra imune aos seus efeitos colaterais e não
foi diferente com os britânicos.
Para levantar
o ânimo das pessoas e retornar à normalidade, nada como mexer com o histórico
de atleta das pessoas, por isso, logo no ano seguinte ao fim da guerra, o
Campeonato Inglês foi retomado.
Porém, quando
a temporada se aproximava da metade, o clima virou para um rigoroso inverno.
Foram 55 dias
consecutivos de neve no Reino Unido, as temperaturas eram as menores
registradas desde 1910 e convivendo ainda com a destruição da Segunda Guerra,
as pessoas precisaram enfrentar um longo período de reclusão para se preservarem
do frio cortante daquele inverno.
O governo interveio
e paralisou a atividade industrial.
Com as
fábricas fechadas, a paralisação se estendeu para ferrovias e estradas, a
energia elétrica passou a ser racionada e o desabastecimento tornou-se ser
rotina dos britânicos.
A vida não
era das mais fáceis naqueles dias e o principal entretenimento do povo estava
ameaçado.
As nevascas
deixavam os gramados em estado impraticável para o futebol, além disso, o frio
tornava humanamente impossível a permanência nas arquibancadas de qualquer
estádio e o desemprego impedia que os trabalhadores comprassem os ingressos.
Até março o
inverno foi cruel, mas a aproximação da primavera melhorou o cenário.
Foi quando o
governo ordenou que a atividade industrial fosse retomada a todo vapor.
Para isso,
porém, era preciso contar com 100% da força de trabalho das pessoas e, nesse
contexto, os esportes populares foram considerados como “distrações
desnecessárias”.
Os esportes
que mais concentravam as massas eram futebol, hóquei no gelo, rúgbi union,
rúgbi league e as corridas de carros, cavalos e cachorros.
Por isso, no
dia 12 de março de 1947, o Ministério do Interior reuniu os dirigentes dessas
modalidades e determinou a realização de jogos apenas aos finais de semana.
O críquete,
também muito popular no país, foi deixado de fora da proibição, pois era um
esporte considerado dos idosos, ou seja, de pessoas fora da faixa etária de
força de trabalho.
A decisão não
foi bem recebida entre a população e os dirigentes como Will Cearns, presidente
do West Ham e, também, diretor do estádio de corridas de cachorro de Wimbledon,
que reclamou, como recordou o Jornal The Guardian:
“O efeito
moral sobre as pessoas poderia ser desastroso. A ideia toda é inacreditável.
Acredito que a opinião contra o banimento dos esportes no meio da semana será
tão forte que nunca entrará em vigor”.
Mesmo sob
protestos dos torcedores e dos dirigentes, a proibição de jogos durante a
semana vigorou e, com isso, organizadores precisaram readequar as disputas ao
novo calendário disponível.
Poderia
parecer fácil remarcar o restante das datas aos fins de semana, mas como o
inverno havia sido bastante rigoroso, muitos jogos já tinham sido adiados e
naquele momento era imprescindível que as datas no meio da semana estivessem
livres para que a disputa se encerrasse até o início de maio, como era
tradicional.
Os dias que
antecederam e as semanas seguintes à reunião com o Ministério do Interior,
foram de nevascas intensas e causaram mais adiamentos por falta de condições
dos gramados encharcados.
Foram sete
rodadas consecutivas com jogos remarcados em função do clima ruim.
Outro grande
problema enfrentado pela Football League, era o desnivelamento da tabela.
Havia
diferenças que chegavam a oito rodadas como no caso do Blackpool, que havia
disputado 34 jogos, enquanto o Sheffield United havia jogado apenas 26
partidas.
Por tudo
isso, aquela temporada de 73 atrás se aproxima muito da situação atual da
Premier League, paralisada em razão da pandemia do novo coronavírus, e colocou
um dilema na continuidade da competição.
Em 1947,
porém, havia a alternativa — que não há hoje — de jogar com portões fechados
durante a semana, mas isso não era atrativo para os clubes que dependiam
financeiramente quase que exclusivamente das bilheterias e vinham do duro
inverno com públicos menores que o de costume e, portanto, com os cofres
abalados.
Outra opção
era suspender a disputa e declarar um campeão, ou seja, o mais bem colocado
àquela altura. Isso, porém, seria muito injusto por conta do desnivelamento de
rodadas entre as equipes, além de influenciar na forma de como decidir os
rebaixamentos e os acessos.
Uma terceira
alternativa era esticar a temporada até o início do verão, ou seja, ao invés de
acabar no início de maio, o campeonato deveria se estender até meados de junho.
Dessa
maneira, por unanimidade, prorrogar o final da temporada foi a decisão tomada
entre clubes e dirigentes da liga.
Porém, há uma
diferença substancial daquela oportunidade para os dias atuais: não sabemos
quando a pandemia vai passar e, além disso, em 1947 os finais de semana estavam
livres para jogos.
Por isso,
atualmente, o Liverpool torce pelo fim da temporada 2019/2020 para ser
declarado campeão num cenário muito diferente de 1947, pois os times disputaram
a mesma quantidade de jogos e a diferença do líder para o vice-líder é grande.
Entretanto,
se o cancelamento da temporada tivesse sido a solução do dilema de 73 anos
atrás, o Liverpool não teria comemorado o fim do incômodo jejum de 24 anos sem
conquistas, o segundo maior da história dos Reds.
Foi na base
de uma imensa reviravolta, porém, que o Liverpool buscou o título da temporada
1946/47.
Tudo começou
antes mesmo da temporada iniciar com uma excursão dos Reds aos Estados Unidos,
a ida a América serviria como preparação nos jogos contra adversários locais,
mas acabou servindo para que os jogadores pudessem aproveitar uma vantagem do
outro lado do Atlântico: a boa alimentação.
A guerra e o
inverno fizeram um racionamento de comida vigorar na vida dos ingleses, mas na
América, o abastecimento estava normalizado e a delegação do Liverpool se
alimentou como nenhum outro clube da Inglaterra.
Ao fim da
viagem, os jogadores tinham ganho em média cerca de seis quilos e estavam mais
fortes e saudáveis do que os subnutridos britânicos.
Apesar de não
ser um dos favoritos ao título, aquele Liverpool contava com figuras como Bob
Paisley, nome lendário no clube como treinador e que atuava como zagueiro, era
treinado por George Kay, que comandou os Reds por quase duas décadas, foi
também a temporada de estreia de Billy Liddell, um dos maiores ídolos do clube,
e na frente, uma dupla responsável por gols e mais gols: Jack Balmer e Albert
Stubbins.
Stubbins
viveria uma fase goleadora na retomada dos jogos adiados e terminaria como
artilheiro da competição.
O primeiro
goleador no pós-guerra, feito que lhe garantiu outra honraria: ser o único
esportista na capa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o lendário disco
dos Beatles.
Quando o
Ministério do Interior ordenou que os jogos durante a semana não fossem
realizados, o Liverpool estava na segunda colocação.
O
Wolverhampton liderava com quatro pontos de vantagem e uma partida a menos.
Empatado em
pontos e atrás do Liverpool apenas no critério desempate, o Blackpool ocupava o
terceiro lugar.
Na
perseguição aos três vinha um grupo com Middlesbrough, Manchester United e
Stoke City.
A arrancada
dos Reds, porém, não aconteceu logo no início do novo calendário, pelo
contrário, na verdade os primeiros jogos mostraram uma certa oscilação.
A data que
pode ser mencionada como o ponto de virada na temporada do Liverpool, é o dia 7
de abril de 1947, quando venceu o Preston por 3 a 0.
Daí em
diante, o Liverpool emendou uma sequência de oito partidas com sete vitórias e
um empate.
Mas como as
vitórias valiam apenas dois pontos, mesmo essa sequência invicta não foi
suficiente para que o time da terra dos Beatles despontasse.
Ainda mais
com a boa fase e as campanhas de recuperação dos adversários mais próximos na
classificação como Wolverhampton, Manchester United e Stoke City, que no final
de abril disputavam palmo a palmo a liderança.
A derrocada
do Stoke começou quando as desavenças entre o lendário Stanley Matthews e o
treinador Bob McGrory atingiram o ponto de o jogador pedir para ser vendido.
Em 10 de
maio, foi disputada uma partida entre Reino Unido e um selecionado do resto da
Europa, no Hampden Park.
O negócio foi
fechado na manhã dessa partida, faltando apenas três jogos para o fim da
participação do time na competição.
O desfalque
enfraqueceu um concorrente pelo título.
No final de
semana de 17 maio, o campeonato estava mais do que embolado.
A diferença
entre o líder e o quarto lugar era de apenas um ponto.
O
Wolverhampton somava 53 pontos, Liverpool e Stoke empatados na segunda
colocação com 52 pontos além do Manchester United com a mesma pontuação, mas
com uma partida a mais.
Aquela rodada
deixou tudo ainda mais embaraçado na briga pela taça.
Os Red Devils
foram a 54 pontos e empataram com o Wolverhampton, enquanto o Liverpool com um
empate foi a 53 e se manteve na cola da liderança.
Mais uma
semana se passou até que iniciasse a rodada de 24 de maio.
Nela o
Liverpool bateu o Arsenal em pleno Highbury, numa virada espetacular por 2 a 1.
Com o
resultado, os Reds assumiram a liderança até que o Wolverhampton venceu o
Huddersfield e pulou para 56 pontos, mesmo número de pontos que atingiu o
Manchester United em sua partida de despedida da competição.
Para
completar o fim disputado de campeonato, o Stoke chegou a 55 pontos ao vencer o
Aston Villa.
Sem chances
de erguer a taça, o Manchester United era carta fora do baralho.
Porém,
Liverpool, Stoke e Wolverhampton poderiam comemorar o primeiro título do
pós-guerra. Para o Wolves bastava vencer o confronto contra o Liverpool,
enquanto os outros precisariam vencer e torcer por uma combinação de
resultados.
Mais de 50
mil torcedores lotaram as arquibancadas do Molineux, no último dia de maio.
Um domingo
ensolarado e quente como o campeonato havia se tornado, clima perfeito para a
torcida dos Wolves comemorar o título em casa.
No primeiro
turno, em Anfield, o Wolverhampton goleou por 5 a 1.
No Molineux,
porém, a história foi diferente e o Liverpool venceu por 2 a 1 com sua dupla de
ataque decidindo o jogo ainda na primeira etapa e o goleiro Cyril Sidlow
evitando a reação dos Wolves.
Os goleadores
Balmer e Stubbins anotaram os gols que garantiram a liderança dos Reds por
apenas um ponto de vantagem.
Depois de uma
reação memorável na competição, restava ao Liverpool apenas esperar o último jogo
da temporada para levantar a taça.
A partida que
o Liverpool aguardava, porém, não seria jogada pelos Reds, que encerraram a
temporada na vitória sobre os Wolves, mas pelo Stoke contra o Sheffield United,
em jogo atrasado que seria disputado apenas em 14 de junho.
Com 55
pontos, o Stoke City foi a Bramall Lane para enfrentar os donos da casa.
Uma vitória
simples daria o inédito título ao Stoke, mas a venda de Stanley Matthews
diminuiu a força dos Potters.
Sem ter nada
a ver com isso e com uma partida heroica de seu capitão Jack Pickering, o
Sheffield venceu por 2 a 1, sendo o tento decisivo anotado justamente por
Pickering, que aos 38 anos fez sua única partida na temporada e definiu o
campeão: o Liverpool.
Cinematograficamente,
no mesmo horário da partida do Bramall Lane, o Liverpool jogava o Merseyside derby,
o clássico contra o Everton.
Quando o
apito final soou no jogo do Stoke com a vitória do Sheffield, os Reds venciam o
arquirrival por 2 a 1 e ainda faltavam 10 minutos para o fim da partida.
A festa que
ainda duraria alguns dias, explodiu entre os torcedores e pouco se deu atenção
ao que ainda acontecia no clássico.
Um gesto
bastante emocionante foi a forma como a notícia do título foi dada a William
McConnell, presidente do Liverpool, apaixonado pelo clube desde a infância e
que integrava diretoria desde 1929.
Internado em
razão de um câncer terminal, McConnell recebeu a bola da partida do Bramall
Lane, que decretou o final do jejum de seu time do coração como prêmio.
O título deu
forças para que o dirigente saísse do hospital para cumprir seu último desejo
que era levar de carro aberto o troféu da sede da Football League até Anfield.
Em agosto,
William McConnell morreu aos 59 anos de uma vida inteiramente devotada ao
Liverpool.
Em 14 de
junho de 1947, com uma enorme festa e depois de muitas agruras, encerrou-se a
mais longa temporada da história do futebol inglês, a primeira do pós-guerra
com o país ainda se reconstruindo, com um frio glacial quase congelando o Reino
Unido junto do futebol inglês e com o Liverpool quebrando um jejum de quase um
quarto de século.
Apenas 70
dias depois, a nova temporada foi iniciada e o jogos de meio de semana foram
retomados.
O Liverpool
não repetiu o bom desempenho e amargou oito temporadas na segunda divisão além
de outro jejum, dessa vez, de 17 anos, que pode até ser assunto por aqui, mas
isso é história para outra oportunidade.
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