Imagem: Central Press/Getty Images
Garrincha, um
improvável embaixador
Por Pedro
Henrique Brandão Lopes/Universidade do Esporte
Em decadência
após não conseguir novos contratos para jogar futebol e praticamente liquidado
pela dependência alcoólica, Garrincha foi Embaixador do Café Brasileiro na
Europa.
O dia 24 de
maio é considerado o dia do café no Brasil.
O grão, que
já foi o principal produto de exportação do país, teve tanta importância na
economia brasileira que possuiu um órgão público exclusivo para gerir o produto
com escritórios inclusive no exterior.
O Instituto
Brasileiro do Café (IBC) foi extinto em 1990, mas, em 1970, o órgão empregou
ninguém menos que Mané Garrincha, a Alegria do Povo.
Apesar do
apelido, Garrincha andava bem triste naquele período.
Ao lado de
Elza Soares, o ex-jogador, que não admitia o fim da carreira, no início de
1970, foi viver em Roma para respirar novos ares, acompanhar Elza numa
tentativa de turnê internacional e, por que não, buscar um contrato em algum
time europeu.
Aos 37 anos,
Garrincha sofria com a decadência física natural da idade, além de uma lesão
seríssima, que o atormentava desde 1963, e o principal adversário que o levaria
à morte anos depois: o alcoolismo.
A estadia em
Roma, porém, começou com Elza como um sucesso de crítica que lotava os teatros
que recebiam suas apresentações.
Além disso,
Garrincha era popular nas ruas italianas, reconhecido praticamente a cada
esquina.
A cantora
incentivava o marido a tentar uma aproximação com clubes europeus.
Nessa toada,
Garrincha chegou a reunir-se com dirigente do Benfica e clubes menores da
Itália, mas seu evidente despreparo físico e o hábito de bebericar além da
conta nesses encontros, afastaram qualquer interesse dos cartolas europeus.
O máximo que
o Anjo das Pernas Tortas conseguiu em sua temporada europeia foi disputar alguns
amistosos amadores em que mais servia como chamariz de alguma festividade do
que como jogador.
Durante essa
temporada italiana, a Copa do Mundo de 1970 foi disputada no México e, pela
primeira vez desde 1958, Garrincha não defenderia o Brasil no Mundial.
Pela TV,
Garrincha tomou um choque de realidade com o sucesso retumbante daquele
selecionado que não mais precisava de seus dribles e arrancadas.
O fim da
linha no futebol parecia inevitável.
Há quase sete
anos sem repetir os grandes momentos do início da carreira, Garrincha estava em
claro declínio futebolístico e mental por conta do alcoolismo.
Porém, foi na
capital italiana que a dependência em álcool virou o jogo sobre Garrincha.
O atacante
que atormentou os maiores zagueiros do mundo passou a ser um homem comum
perambulando pelas ruas de Roma e chegou a ser visto apanhando bitucas de
cigarros do chão.
Tudo isso,
claro, cambaleante não pela ginga com a qual encantou o mundo, mas pela
embriaguez persistente.
Elza Soares,
que já sofria com o alcoolismo de Garrincha há pelo menos uma década, pediu
ajuda aos conhecidos e, assim, a situação do craque chegou aos ouvidos de
ilustres fãs do Anjo das Pernas Tortas no Brasil.
Jarbas
Passarinho, então ministro da Educação, era um dos muitos brasileiros que
adoravam a magia do craque das pernas tortas.
O ministro
usou sua influência e deu o aval para uma engenharia que já estava sendo
montada por figuras importantes no Ministério da Indústria.
Até o então
presidente/ditador Ernesto Geisel interveio junto ao IBC para que Garrincha
fosse contratado, já que um ídolo brasileiro passando necessidades no exterior
não seria uma boa propaganda do regime.
Enfim, o
emprego saiu, mas como a sede do IBC ficava em Milão, Elza e Garrincha
mudaram-se para a capital da moda.
A mudança
calhou bem ao casal, que já devia aluguéis e estava prestes a ser despejado.
O salário
proposto era de 1000 dólares mensais.
Para se ter
ideia, o chefe do IBC recebia 1200 dólares.
O salário,
junto à função, que antes não existia, e foi criada sob medida para Garrincha,
causou desavenças naturais dentro do órgão e foi motivo para o craque sofrer
com os olhares atravessados.
A atividade
do recém criado cargo de embaixador do café brasileiro na Europa, na verdade,
resumia-se à ida de Garrincha às feiras gastronômicas onde o IBC promovia a
venda do produto.
Em resumo,
Garrincha seria um garoto propaganda de um dos principais produtos de
exportação do Brasil e compareceria apenas às tais feiras sem que houvesse
sequer a obrigação de ir a todas.
Porém, o
alcoolismo não permitia que Garrincha fosse aos seus compromissos.
Entre as 20
feiras agendadas para 1971, Mané foi apenas a três.
Uma
improdutividade colossal e que mesmo para um cargo criado no intuito de
ajudá-lo, gerava evidente desconforto no IBC.
Nas poucas
oportunidades em que cumpriu com sua nova ocupação, Garrincha cometia gafes por
conta de sua famosa ingenuidade.
Na biografia
Estrela Solitária, Ruy Castro resgata um diálogo de Garrincha, que não falava e
sequer fazia questão de tentar aprender outro idioma, com um italiano que foi
ao estande do IBC apenas para conhecê-lo, mas resolveu, talvez até para puxar
assunto com ídolo, perguntar sobre o café do Brasil:
“E esse café
do Brasil, é bom mesmo?”
Garrincha
sucumbiu à sinceridade:
“Não sei,
nunca tomo. O que sei que é o fino é a pinga do Brasil”.
O intérprete,
claro, não traduziu e inventou outra coisa para não constranger os presentes.
Com episódios
como este e diversas ausências nas ocasiões em que deveria promover o produto
brasileiro na Europa, o emprego no IBC não duraria muito e tudo indicava uma
demissão.
Garrincha
antecipou-se.
Aproveitou um
convite recebido por Elza Soares para uma turnê brasileira e pediu seu
desligamento do Instituto Brasileiro do Café para acompanhar a esposa de volta
ao Brasil, em dezembro de 1971.
A passagem
pela Itália foi mais um capítulo da hercúlea batalha que Elza Soares travou
para salvar o amor de sua vida da autodestruição.
Garrincha foi
implacável consigo como fora com os zagueiros que enfrentou.
Elza
esforçava-se para conseguir mostrar caminhos e possibilidades de ajuda ao
craque, o IBC foi mais uma das tantas oportunidades que Garrincha driblou,
talvez inconscientemente, mas que acabaram por levá-lo ao fim inglório que
teve.
Outra
reflexão que a passagem de Garricha pelo IBC desperta é sobre a relação
perniciosa que o Estado mantém ao se aproveitar do capital de imagem de ídolos
do esporte.
E para quem
pensa que isso seja coisa do passado, basta retomar o recente caso em que
Ronaldinho Gaúcho foi nomeado embaixador do turismo brasileiro e passou a
figurar no quadro de funcionários da Embratur, mesmo com os passaportes retidos
na Justiça da Espanha.
Um
contrassenso imensurável.
Se na origem
da nomeação constavam motivos diferentes da oportunidade em que Garrincha
serviu ao IBC, de maneiras distintas, os fins desejados em ambas as situações
eram os mesmos: usar a imensa popularidade dos jogadores para embarcar o
governo na onda de aprovação pública dos atletas.
Não por acaso
o paralelo acontece com um jogador que guardadas as proporções experimentou uma
ascensão e queda tal qual Garrincha e ficou marcado por surgir em ocasiões
estranhas ao mundo esportivo como foi a participação dos dois em órgãos
públicos.
No retorno ao
país, o calvário de Garrincha com o alcoolismo continuaria até 20 de janeiro de
1983, quando aos 49 anos de idade, morreu vitimado sobretudo por uma tristeza
que contrastava com a Alegria do Povo, completamente liquidado pela dependência
e com passagens folclóricas, como o período em que foi o Embaixador do Café
Brasileiro.
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