Ilustração: Fabrizio Birimbelli
O homem da
bola impressa
Por Lúcia
Oliveira do Universidade do Esporte
Quando
acompanhadas de uma bola, as crianças reúnem-se e vão ao encontro de algum
lugar que as permitam colocar em prática o verbo preferido delas: brincar.
Nessas idas e
vindas, acompanhadas de dribles, gols e até machucados, há quem nutra o sonho
de ser um jogador de futebol.
Com Eduardo
Galeano não foi diferente, mas ele, por se declarar um ótimo perna de pau com a
pelota nos pés, jogou no mundo da bola de outra maneira, fez das palavras suas
chuteiras e lançou-se nas canchas da literatura.
Autor de mais
de 40 livros, jornalista e escritor, Eduardo Hughes Galeano nasceu em 3 de
setembro de 1940, em Montevidéu, Uruguai.
Desde
pequeno, sonhava em seguir carreira como jogador, porém a habilidade com os pés
nunca foi seu forte e ele era um craque, daqueles que fazia a torcida cantar
seu nome, apenas enquanto dormia, pois tudo não passava de sonhos.
Mesmo assim,
o destino tratou de manter Galeano, de alguma maneira, ligado ao futebol.
Ainda na
adolescência, aventurou-se como caixa de banco, pintor, mensageiro e
datilógrafo.
Aos 14 anos,
seu talento artístico falou mais alto e Eduardo vendeu sua primeira charge
política chamada “Gius”, uma onomatopeia – irônica – de seu sobrenome de origem
inglesa.
Seu primeiro
livro foi publicado em 1963, quando já havia iniciado sua carreira jornalística
como editor do jornal Marcha, veículo uruguaio bastante reconhecido em todo o
território latino-americano.
A política
também foi um campo em que Galeano atuou.
Em 1971,
publicou uma das obras mais marcantes de sua vida: As veias abertas da América
Latina.
No livro,
analisou a história dessa localidade desde o período colonial até o contexto
atual da época de publicação e retratou também a influência da exploração
política e econômica dos Estados Unidos e da Europa.
Apesar de
considerar a crítica social essencial no conteúdo de suas publicações, o
futebol ainda estava ali, junto à caneta de Galeano.
Tanto que, em
1995, lançou O futebol ao Sol e à sombra.
Na obra, ele
declara:
“Como todos
os meninos uruguaios, eu também quis ser jogador de futebol. […] Os anos se
passaram, e com o tempo acabei assumindo minha identidade: não passo de um
mendigo do bom futebol. Ando pelo mundo de chapéu na mão, e nos estádios
suplico:
— Uma linda
jogada, pelo amor de Deus!”
O autor, além
de torcedor do Nacional do Uruguai, era defensor do bom futebol, das belas
jogadas, dos gols, e, por isso, para ele, a rivalidade entre clubes podia ser
deixada de lado, afinal, o que importava de verdade era que, em campo, a
partida lhe enchesse os olhos, mesmo que fosse um jogador de seu time do
coração a sofrer um lençol do adversário.
“[…] E quando
acontece o bom futebol, agradeço o milagre – sem me importar com o clube ou o
país que o oferece.”
No mundo, há
quem diga que algumas pessoas correndo atrás de uma bola é uma ação ilógica.
Segundo
Galeano, isso só não faz sentido quando há um interesse rentável e essa era, dentro
do meio esportivo, sua maior crítica.
Em uma
entrevista exclusiva ao jornal Estado de S. Paulo, quando veio ao Brasil para
participar da 2ª Bienal do Livro e da Leitura de 2014, em Brasília, disparou:
“Os
dirigentes vivem como em um castelo muito bem guardado. E os protagonistas do
futebol, os jogadores, trabalham como macacos de circo, ou seja, não são os
receptores dos benefícios dos espetáculos que nos brindam – acredito que sejam
fortunas, pois as contas são secretas. E os atletas atuam pelo prazer de jogar,
o que é importante. Eu rogo a Deus para que os jogadores não percam esse
prazer, pois, nos últimos anos, eles vêm sendo condicionados a apenas ganhar, o
que resulta em mais dinheiro. Não aprovo essa identificação da bola como fonte
de lucro. Nos últimos anos, o futebol tem perdido aquele brilho de encantamento
que deveria marcar cada partida.”
Apesar das
críticas e de o futebol ser, como ele mesmo definiu, “uma triste viagem do
prazer ao dever”, o mundo da bola sempre foi uma de suas maiores paixões.
Em tempos de Copa do Mundo, Galeano pendurava um cartaz na porta de sua casa
com que dizia: “Fechado por motivo de futebol”.
Como se
estivesse num verdadeiro teatro, ele, vestido de torcedor e representando a
plateia, assistia ávido à apresentação, que contava com vários personagens.
Incerto sobre
como seria o fim do espetáculo, esperando que a bola pudesse sinalizar “o
orgasmo do futebol”, ou seja, o gol, Eduardo sofria com “o ídolo” caído no
meio do gramado, com o goleiro – que mais era conhecido por “desmancha
prazeres” – e, por fim, com o árbitro, aquele que “levanta as cores da
condenação”.
Por último,
mas não menos importante, há o palco em que acontece o espetáculo.
O estádio é a
casa da torcida, é lugar de festa, bem como pode ser cenário de peças
dramáticas e tristes.
Tudo é
sentido intensamente na arquibancada, da vibração do cimento duro que flexiona
nos pulos da massa até à tensão contagiosa na hora de um pênalti, mas depois do
êxtase vem o sepulcral silêncio que deixa o ar palpável de tão pesado e é sinal
de que o futebol deixou o gramado e sem a torcida perde-se a razão primeira de
ser do estádio, fica o vazio.
“Você já
entrou, alguma vez, num estádio vazio? Experimente. […] Não há nada menos vazio
que um estádio vazio. Não há nada menos mudo que as arquibancadas sem ninguém.”
Todos esses
sujeitos acima foram caracterizados um a um em O futebol ao Sol e à sombra,
livro que Galeano finalizou dizendo:
“Escrevendo
ia fazer com as mãos o que nunca ia ser capaz de fazer com os pés, eu não tinha
outro remédio além de pedir para as palavras o que a bola, tão desejada, me
tinha negado. Desse desafio, e dessa necessidade de expiação, nasceu este
livro. […] Não sei se é o que quis ser, mas chegou a sua última página. E eu
fico com essa melancolia irremediável que todos sentimos depois do amor e no
fim da partida”.
Quem toma
conhecimento do grande legado que Galeano deixou não imagina que sua educação
formal não passou do primeiro ano do ensino secundário, fato que não o impediu
de aprender, muito bem, a arte de narrar.
Talvez,
justamente a ausência de uma formação acadêmica tenha lhe dado a oportunidade
de olhar os gramados com a sensibilidade necessária para enxergar, no futebol,
uma metáfora da vida.
Enquanto
viveu, colecionou amigos, livros, felicidades, inimizades, histórias,
doutorados Honoris Causa, tristezas e, sobretudo, palavras.
Em 2015, aos
74 anos, o avanço da idade já era significativo, mas não impedia que o uruguaio
escrevesse.
Por outro
lado, sua saúde foi driblada por um adversário que, em muitos casos, não é
detido.
O câncer
tomou conta do pulmão do famoso autor e em 13 de abril daquele ano, Galeano
faleceu.
De acordo com
ele, “a morte, muitas vezes, mente quando se imagina que uma pessoa morreu,
ela continua viva na memória, nas conversas, nas decisões” e é exatamente
assim que sua figura está até hoje.
A literatura, universo em que marcou
inúmeros gols – muitos deles de placa –, acolheu Galeano do mesmo jeito que a
bandeira do time abraça o torcedor quando este vai ao estádio e deu ao uruguaio
a chance de mostrar seu imenso talento em um gramado diferente, os livros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário