Imagem: Autor Desconhecido
Sérgio
Sant’Anna, um contista com a janela aberta para o futebol
No domingo de
Dia das Mães, 10 de maio, o escritor Sérgio Sant’Anna foi um dos muitos
brasileiros que sucumbiram à Covid-19. Deixou como herança à posteridade sua
obra e seu futebol de ontem, de agora e de sempre
Pedro
Henrique Brandão Lopes/Universidade do Esporte
Sérgio Sant’Anna
nasceu no Rio de Janeiro, em 1941, mais precisamente no dia 30 de outubro.
Na
adolescência frequentava todos os jogos do Fluminense e até alguns treinamentos
do Tricolor das Laranjeiras.
No final dos
anos 1950, deixou o Rio e passou a juventude em Belo Horizonte, onde estudou
direito.
A distância e
a vida adulta poderiam afastá-lo do futebol e do Fluminense, mas o esporte
bretão teve lugar cativo na obra do escritor.
Foi a rica
vivência adquirida na infância em campos do subúrbio carioca, levado pelo tio
Luiz Andrade, jornalista e diretor de imprensa do Fluminense, para acompanhar o
Tricolor nos jogos contra Olaria, na Rua Bariri, Bangu, em Moça Bonita, e
Madureira, na Conselheiro Galvão, entre outros, que formou o repertório
estilístico usado pelo escritor como cenário de algumas obras.
Não foram
poucas as vezes que Sant’Anna recorreu ao futebol em sua escrita.
Em algumas
oportunidades até com um quê “profético” como no conto “Na boca do túnel”,
de 1982, um relato em primeira pessoa de um treinador do São Cristóvão que vai
jogar no Maracanã contra um clube grande e sofre um 7 a 1.
Mais de 30
anos depois, um outro 7 a 1 abalaria o Brasil.
O autor era
dono de uma habilidade incomum para dominar as palavras, semelhante a que vira
Didi ter para dominar a bola no meio-campo lendário do Fluminense, que assistiu
quando garoto.
Em 1969, aos
28 anos, lançou sua primeira obra, o livro de contos “O Sobrevivente”.
A partir de
então, mostrou versatilidade de estilos — digna dos jogadores modernos — para
escrever em vários gêneros, o que lhe permitiu publicar poesias, romances,
peças de teatro e novelas, mas foi no conto que o escritor encontrou sua
“posição” no campo da literatura.
Essa
versatilidade fez de Sérgio Sant’Anna figura central na literatura brasileira
moderna e sem dúvidas, um dos mais originais autores de seu tempo.
O próprio
escritor definia sua obra pelo “experimentalismo e a molecagem”.
Guiado pela
vontade de experimentar o novo e a tal molecagem que lhe conferia a coragem
para isso, Sérgio apresentava em sua escrita uma inquietação incessante,
natural aos grandes autores.
Semanas antes
de morrer, publicou em seu perfil no Facebook:
“Não quero
assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante.
Não encontro outro modo de reagir senão escrevendo”.
Assim, o
escritor se manteve ativo até os últimos momentos.
Produziu e
publicou até ser internado no dia 3 de maio.
Poucos dias
antes, em 26 de abril, a Folha de São Paulo publicou um conto inédito de
Sant’Anna.
No texto, o
autor retoma as lembranças dos treinamentos do Fluminense que frequentava na
juventude.
Com a
genialidade de poucos, narra os fatos a partir do ponto de vista de uma
saudosista trave de madeira.
“Das memórias
de uma trave de futebol em 1955” é um
minucioso e sensível retrato de um Fluminense que tinha os goleiros Castilho e
Veludo no auge de suas formas física e técnica, além de uma linha de ataque que
ostentava Telê, Didi, Valdo, Átis e Escurinho.
Porém, como
pede uma boa tabelinha entre literatura e futebol, o conto vai além e com fino
entrosamento revela uma época em que as traves eram de madeira e os meninos
matavam aula para assistir ao treino nas Laranjeiras.
Um tempo e um
futebol que não existem mais a partir da visão de uma trave durante um galáctico
treino:
“A folha seca
é assim: a bola vem pelo alto, mas perto do gol, perto de mim, de repente perde
força e cai, tantas vezes na rede. Didi acaba de bater uma falta dessas, só que
a bola bateu na trave, eu, bem no ângulo. Não sei se devo sentir orgulho ou
decepção, acho que ambas as coisas. Pois a cobrança foi perfeita, uma
obra-prima, que assisti do meu posto privilegiado, mas ao mesmo tempo me sinto
defendendo o gol do Castilho, meu irmão quase, eu diria. Mas Didi sorriu pra
dentro, com seu jeito discreto, pois foi bonito e engraçado. Pode isso? Pode.”
“Mas outras
bolas entraram, a primeira delas do Telê, que recebeu um passe do Didi, na
ponta direita, e emendou de primeira, com efeito, à meia altura, uma pintura de
gol, até aplaudido pelos poucos assistentes. As palmas num estádio vazio ecoam
diferentes, um pouco melancólicas, pois um gol desses devia ter sido feito num
clássico de domingo, no Maracanã, contra o Flamengo”.
O conto, que
entrou para a galeria de obras-primas do escritor, é lindo do início ao fim e
vale duas, três, dez leituras.
No entanto,
nos dois últimos parágrafos, Sérgio Sant’Anna faz questão de deixar claro que
não falava “apenas” de futebol, porque é impossível deixar de entender
aquilo que acontece no gramado como uma metáfora da vida:
“O problema é
que o treino logo terminou. É complicado isso, quando um espetáculo termina,
mesmo que um simples ensaio. Mas havia as estrelas principais, os coadjuvantes,
figurantes, espectadores. Todos, no gramado e na assistência, vão conversando
enquanto saem. Comentam entre si o que assistiram, alguns, os torcedores mais
fanáticos, até empolgados. Mas aí, aos poucos, já começam a falar do espetáculo
principal de domingo, o Fla-Flu. Como eu gostaria de estar lá para participar
ou ver. Mas, pior do que isso, é que em breve meu tempo terá passado.”
“Ainda vejo
um pôr do sol, meio cortado, porque a geral no piso superior, do outro lado do
campo, só me dá a visão até um ponto. Mas o crepúsculo, embora essa palavra me
cause arrepios, é sempre bonito. Bonito e triste. Para piorar, volto a lembrar
daquele cara que veio me ver, ver as traves, em que deu dois chutinhos, e
depois disse aquele negócio de dar cupim. Mas isso acontece com todos os seres,
animados ou inanimados, me deu vontade de responder, se conseguisse. E a noite
logo vai cair. A noite também é bonita, mas seria muito mais se fosse de dia de
jogo, o estádio iluminado. Mas não. Para mim, em breve, será só escuridão”.
Não por
acaso, uma de suas últimas produções foi sobre futebol, sobre o Fluminense,
definitivamente sobre a sua vida.
Talvez porque
como o próprio Sérgio Sant’Anna gostava de dizer, “não gosto de me repetir”,
não há nada neste mundo mais imprevisível e irrepetível do que o futebol.
Nas quatro
linhas, o imponderável impera, o “Sobrenatural de Almeida” é quem dá as
ordens e tudo pode mudar num lance, num segundo, numa única bola.
Chato é o
jogo em que o placar fica na igualdade, o futebol é um dos poucos lugares em
que a igualdade é repugnante.
Foi genial
dizer adeus assim, com um conto sobre futebol, como se fosse uma confissão ou
uma declaração definitiva de despedida que nunca deixará sua obra cair na
escuridão do esquecimento, Sérgio Sant’Anna lega à eternidade e faz vivo seu
futebol de ontem, de hoje e para sempre.
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